terça-feira, 27 de setembro de 2011

Epitáfio

Hoje aconteceu o ritual de passagem de minha tia Inês. Após 82 anos de vida e 60 de casamento, 2 filhos e 3 netos, ela se foi, na noite de ontem, deixando saudades. E há poucos dias eu havia encontrado com ela e ela alegremente comentou comigo que seria minha paciente. Ela sempre torceu muito por mim. "A filha de Ariston". Assim me chamava, pois numa família tão grande, fica difícil lembrar o nome de todos os sobrinhos. Mas eu era a filha espevitada. A menina teimosa e traquina, mas que era "a mais inteligente de todas". E minha tia se foi na noite de ontem, sem causa de óbito e sem autópsia. Não quiseram prolongar o sofrimento da família esperando o IML averiguar as possíveis causas de falecimento de uma senhora de 82 anos. Até que hoje ela fez seu ritual de passagem (ou nós fizemos para ela). Eu gosto de funerais. Meu pai os detesta. Nem quis chegar perto do caixão, enquanto eu segurava na mão do meu tio e do meu primo e dizia a minha tia que sabia que ela estava com Deus. Não me sinto mal com funerais, com as passagens das pessoas. Acredito que há um propósito para a vida não ser eterna neste plano. Acredito mais no plano superior e nos desejos divinos. Nunca chorei em funerais, nunca senti falta de ninguém que já se foi. Na realidade, não é que eu seja insensível. Apenas sinto a presença deles em meu coração. E é tão forte que não me faz falta. Não é a ausência que está presente, são os bons momentos. E além do mais, eu realmente creio num plano superior melhor. Não sei se terei toda essa força quando meus pais partirem, ou meus avós. Mas sinto que terei coragem de discursar sobre eles, mesmo que a dor seja grande. E hoje eu vi uma linda prova de amor. Meu tio deixou o espaço dele reservado no mesmo jazigo, para quando ele fizer sua passagem. E plantou a flor preferida da minha tia ao lado dela, para que a vida ali nunca se acabe. Quando eu for, eu não quero que chorem por mim. Não quero ninguém de óculos escuros para esconder olhos inchados. Não quero abraços de compaixão. Não quero que olhem meu corpo pela última vez com pena. Quero que me olhem como eu olhei minha tia hoje, com a sensação de que ela cumpriu seu papel e que está feliz no outro plano. Se puderem, façam uma festa. Digam o quanto eu fui feliz. Diagm que, apesar de ser bipolar, era justamente a minha doença que me tornava a pessoa mais feliz do mundo. Eu vivo de extremos. Minhas felicidades são sempre exageradas. E assim quero que se lembrem. Das felicidades sem fim, dos sorrisos, das conquistas, das coisas boas que ainda não fiz. Quero todos sorrindo e dizendo "Ela foi feliz, ela teve uma vida tranquila e agora vai dar trabalho lá em cima, vai querer trabalhar, vai querer ajudar aos outros, vai querer continuar o que fazia aqui". Quero que se lembrem porque escolhi ser médica. Por amor ao próximo, talvez mais que a mim mesma. Por amor ao desconhecido. Pela vontade de ajudar. Não sou santa. Longe de mim (bem longe). Mas quero que lembrem das coisas boas. Da infância em Guarajuba. Da mordida de cobra. De como eu sempre me expressei bem. Das quedas de bicicleta. e quando eu perdi os dentes. Do dom para a oratória, o teatro, as artes. Da inteligência. Da felicidade em ter passado no vestibular. E quero que me desculpem por cada coisa de ruim que fiz. Não que se lembrem com rancor. Mas que façam uma prece e me perdoem, pois eu, de onde estiver, perdoarei cada um se alguma mágoa tiver restado em meu coração instável. Mas eu peço, de verdade, que se eu morrer antes de vocês, levem meu pai ao funeral e façam que ele se sinta feliz. Quero todos felizes. Não porque estarei longe e minha presença física jamais se fará novamente. Mas felizes porque um dia conviveram comigo. Porque tiveram o privilégio de conhecer uma pessoa cheia de problemas, mas feliz. Quero muito que meu pai saiba que eu o amo e que se eu for antes dele, quero que ele se sinta orgulhoso pelos anos que passou ao meu lado, pelas noites que não dormiu para me ver dormir. Porque se a vida seguir seu curso natural e o senhor for antes de mim, ainda que eu não me lembre dessas noites, terei na lembrança o quanto me amou e isso preencherá meu coração do vazio e da ausência. Enfim. Que deus esteja conosco sempre. Que hoje ele esteja ao lado de minha tia. Que tia Elza e tia Nina já possam recebê-la na colônia. E que quando eu reencontrá-las, o momento seja de festa. Mãe, apesar de eu ter dito palavras aqui sobre meu pai (porque eu realmente me orgulho dele e o acho a pessoa mais inteligente do mundo), quero que se sinta da mesma maneira que ele. Porque, ainda que eu estivesse errada, você esteve sempre ao meu lado para me defender, como uma leoa defende sua cria (e você é de leão). Eu sou sua cria. Sua cara, seu focinho, seus olhos e olhares. Sou você mais nova e me orgulho disso. Aos meus irmãos, que ótimas companhias vocês foram. Apesar das brigas, meus dias se tornaram muito mais divertidos ao lado de vocês. A vovó, meu aninho, minha estrela-guia, eu a amo. Não sei nem a dimensão disso, mas é algo tão grande que mal cabe em mim. A senhora é tudo na minha vida. Nasci praticamente na sua casa, vivi na sua casa no início da minha vida, fiz xixi no seu sofá novo, aprendi a ler com você comprando gibis pra mim toda semana. Vó sempre estraga os netos. Mas a senhora não me estragou. Aprendi a ser uma pessoa melhor com a senhora e pela senhora. Sua doença me aproximou ainda mais de ti. E quase como um único cordão umbilical, eu, a senhora e minha mãe estamos para sempre ligadas. Aos meus avós paternos, também os amo. Minha avó e sua mania de dizer que eu era superdotada, sempre me enchendo a bola. Meu avô e seu jeito rabugento de reclamar, mas seu jeito carinhoso de dar colo quando preciso. Aos primos, obrigada pela infância maravilhosa. A vovô, se eu partir antes da vovó, quero que o senhor me acorde. Ficarei mais tranquila ao seu lado. Se eu partir depois dela, do papai e da mamãe, que me acordem aqueles que puderem. Amo muito vocês! Mãe e pai, quero que lembrem de como eu acordava a noite e ia para o meio da cama de vocês, porque eu sempre estarei unindo vocês dois (acho até que é pela falta de vocês ao meu lado na cama que até hoje eu não durmo bem). Mamãe, se meus olhos se fecharem antes dos seus, me dê um beijo para que eu jamais tenha medo da escuridão. E papai, se eu passar antes de ti, por favor, não esqueça de me carregar pela última vez, para que eu possa dormir tranquila por toda a eternidade...




Com amor e para sempre




Thaise


PS: Escrevam no meu jazigo "Aqui jaz alguém que jamais partirá dos nossos corações"